24/07/2015 às 11h13min - Atualizada em 24/07/2015 às 11h13min

Cientistas descobrem fóssil de cobra com 4 patas, que pode ter sido roubado da divisa do Piauí com o Ceará

Pesquisa foi feita na Europa, com fóssil de um museu alemão. Cientistas brasileiros acreditam que a peça, originária da Chapada do Araripe, no Nordeste, tenha saído ilegalmente do País.

Estadão

Cientistas europeus estão anunciando na edição desta semana da revista Science a descoberta uma cobra com quatro patas que viveu há 120 milhões de anos onde hoje fica a Chapada do Araripe, no coração do sertão nordestino, na divisa do Ceará com Pernambuco e o Piauí. Trata-se de um achado potencialmente revolucionário para o estudo da evolução das cobras e lagartos no mundo todo, mas que não deverá arrancar aplausos da comunidade científica brasileira. Muito menos das autoridades nacionais.

Apesar de o fóssil ser patrimônio brasileiro, os autores da pesquisa são todos estrangeiros, e não está claro como a peça saiu do País. A lei brasileira proíbe, desde 1942, a exploração e retirada de fósseis do território nacional por estrangeiros sem autorização do poder público.

Os autores do trabalho dizem que a peça estava “há várias décadas” em uma coleção particular e que não há informações sobre como, quando ou por quem ela foi coletada.

“Não tenho como provar que isso não é verdade, mas eu não acredito”, disse ao Estado o chefe da Divisão de Proteção de Depósitos Fossilíferos do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), Felipe Chaves. “É um material muito nobre para ter ficado guardado tanto tempo sem despertar o interesse de ninguém.” Segundo ele, este é o primeiro fóssil de cobra (com ou sem patas) já descoberto no Araripe, e está em excelente estado de conservação. “Do ponto de vista paleontológico, é um material espetacular.”

O mais provável, segundo Chaves, é que o fóssil tenha saído ilegalmente do País. “Vamos solicitar à Polícia Federal que abra uma investigação sobre isso”, afirma.

O presidente da Sociedade Brasileira de Paleontologia, Max Langer, é da mesma opinião. “Pode até ter acontecido como eles (os autores) dizem, mas é muito pouco provável. A maior probabilidade é que esse fóssil saiu há poucos anos do Brasil, de forma ilegal”, avalia Langer, professor do Departamento de Biologia da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, no interior paulista. “É muito frustrante.”

Procurado pelo Estado, o autor principal da pesquisa, David Martill, disse que viu o fóssil pela primeira vez três anos atrás, durante uma visita com seus alunos ao Museu Bürgermeister-Müller, em Solnhofen, na Alemanha. Segundo ele, a peça estava exposta como um “fóssil de vertebrado desconhecido”. “Me disseram que o espécime veio de uma coleção privada”, afirma Martill, professor da Universidade de Portsmouth, na Inglaterra.

Martill é um crítico conhecido da lei brasileira de proteção aos fósseis, que ele diz considerar anticientífica e xenófoba.

“Pessoalmente, não dou a mínima sobre como o fóssil saiu do Brasil ou quando ele saiu do Brasil. Isso é irrelevante para o significado científico da peça”, disse-me Martill, em uma entrevista por email. “Os paleontólogos brasileiros podem acreditar no que eles quiserem”, desafia o britânico. “Não há nenhuma etiqueta no fóssil dizendo quando ou como ele foi coletado. Ele só foi reconhecido como sendo certamente do Brasil porque eu sou um especialista na Formação Crato”, completa Martill, referindo-se à seção da Chapada do Araripe da qual o fóssil teria sido extraído, que possui um tipo muito característico de rocha.

Para o herpetólogo (especialista em répteis) e paleontólogo Hussam Zaher, do Museu de Zoologia da USP, cabe aos autores demonstrar a legalidade do fóssil, e não ao Brasil. “Eles é que têm de provar isso”, diz.

Ilustração de como seria a cobra de quatro patas, que tinha 20 cm. Os cientistas sabem que ela era carnívora, pois encontraram restos de um vertebrado fossilizados em seu estômago. Crédito: Julius T. Cstonyi

ELO PERDIDO?

Zaher questiona o estudo não só do ponto de vista ético mas científico. A análise que os autores fazem do fóssil, segundo ele, é “furada”. “Não há nenhuma evidência irrefutável de que esse bicho seja uma cobra”, afirma Zaher, que ajudou a descrever alguns dos primeiros fósseis de cobras com patas e tem vários de seus trabalhos citados no artigo de Martill. Ele acredita se tratar de um “lagarto serpentiforme”, e não de uma cobra verdadeira. “Está muito mais para lagarto do que cobra”, diz.

“Bem, é meio que uma cobra-lagarto, porque tem patas. Mas é mais cobra do que lagarto”, rebate Martill. Na interpretação dos autores, trata-se de uma forma intermediária (vulgo “elo perdido”) entre lagartos e cobras, com características dos dois grupos. O animal tinha cerca de 20 centímetros e a espécie foi batizada de Tetrapodophis amplectus. Não é a primeira vez que se encontra uma cobra com patas, mas todas as espécies descobertas até agora tinham apenas duas patas (traseiras), nunca quatro.

Se a interpretação dos autores estiver correta, o Tetrapodophis é mesmo uma descoberta espantosa, que pode revelar muitos detalhes sobre a evolução das cobras. A teoria predominante é que as serpentes evoluíram de uma linhagem de lagartos que foram reduzindo suas patas gradativamente, até perdê-las por completo (ao longo de muitas gerações, por meio de um processo de seleção natural). Há dúvidas, porém, se essa transição ocorreu no ambiente marinho ou no meio terrestre. Se Tetrapodophis é mesmo uma cobra primitiva, suas características anatômicas sugerem que a transformação ocorreu em terra. Seu corpo não possui nenhuma característica de animal aquático; é típico de animais fossoriais, adaptado para cavar túneis e se esgueirar por debaixo da terra. Os pesquisadores acreditam que suas patas — incrivelmente bem preservadas no fóssil — eram ainda funcionais, mas usadas para ajudar a segurar presas, não mais para locomoção. Onde ficava o estômago do bicho, podem ser vistos os restos fossilizados de um outro vertebrado, indicando que a cobra era carnívora.

Além de Martill, assinam o trabalho Nicholas Longrich, da Universidade de Bath, também na Inglaterra, e o alemão Helmut Tischlinger, sem filiação acadêmica. Longrich disse ao Estado que concorda com a posição de Martill, de que a ciência não pode ser atravancada e que pesquisadores devem ter liberdade para estudar fósseis de outros países, mas entende a preocupação dos brasileiros e acha que o fóssil deveria retornar ao país de origem. “Se a escolha fosse minha, eu teria devolvido para o Brasil. Mas o fóssil não era meu, então a escolha não era minha.”

O fóssil, em excelente estado de preservação. Crédito: David Martill


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